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A lista ‘suja’ das seguradoras

Fonte: Diário do Litoral

Dezenas de caminhoneiros estão sendo impedidos de trabalhar porque estão devendo na praça. A situação contraria a Constituição

Não há um número exato, mas dezenas de caminhoneiros da Baixada Santista e região estão sendo impedidos de trabalhar, pelo simples fato de deixarem de pagar a prestação da geladeira, do fogão, uma conta de luz e até um cheque devolvido. É que as gerenciadoras de riscos e seguradoras criaram uma espécie de lista suja que impede as transportadoras de contratarem serviços de profissionais com nomes sujos.

A informação é do casal de advogados Adriana Rodrigues e Fernando Vieira Silveira, que vêm tentando impedir que essa prática continue impedindo o ‘ganha pão’ dos trabalhadores, cujas vidas passam por uma verdadeira varredura. O banco de dados das seguradoras é velado e os caminhoneiros ficam sabendo somente na hora de carregar que estão impedidos de trabalhar. Muitos ficam desesperados por não conseguir sustentar a família e perdem, inclusive, o caminhão pago à prestação.

Quando as seguradoras não conseguem obter as informações, exigem que as transportadoras consultem cadastros do Serviço Central de Proteção ao Crédito (SCPC) e na Serasa (empresa criada pelos bancos, com o objetivo de centralizar informações) para garantir a carga.

Segundo Adriana e Fernando, a Convenção das Leis Trabalhistas e a própria Constituição Brasileira dispõem que qualquer pessoa é livre para trabalhar se tiver a qualificação exigida por lei para a atividade proposta. Neste sentido, eles acreditam que o que as seguradoras estão fazendo é uma verdadeira discriminação.

Isso porque os caminhoneiros estão sofrendo danos materiais, decorrentes das perdas sofridas por terem deixado de trabalhar, e morais, por força da humilhação sofrida. Muitos estão largando a profissão e outros ameaçando migrar para a contravenção por conta do desespero de ver a família passando fome.

“Isso não pode continuar ocorrendo. Se não existe problemas no trajeto, na carga ou no caminhão, por que privar o caminhoneiro de seu direito constitucional? Isso é discriminatório, um abuso de direito. O profissional não foi condenado criminalmente por roubo ou outro delito grave. O caminhoneiro não pode ser impedido de trabalhar por ter deixado de pagar a casa própria”, afirma Fernando.

Adriana completa o raciocínio do colega. “As gerenciadoras de risco consultam até ações de revisão de dívida em função de juros considerados abusivos. Ou seja, o caminhoneiro está sendo duplamente penalizado. Tem profissional que está há mais de três meses sem trabalhar. Passou fome, vendeu o caminhão. A negativação no Serasa não impede que ele transporte a carga com seriedade e compromisso”, afirma.

A advogada revela que é obrigada a encaminhar para as seguradoras todo o processo de revisão de dívida. Caso contrário, o trabalhador não consegue carregar. “Para liberar o trabalhador, a seguradora pede cópia do processo inicial e todos os depósitos judiciais. Temos que ficar o dia inteiro cumprindo as exigências e, em muitos casos, o caminhoneiro, ainda sim, não consegue carregar”, explica Adriana.

Apólice

“Estamos entrando com ações no sentido de impedir que as seguradoras forneçam os dados negativos para as transportadoras, que assinam uma apólice que exige que o trabalhador não tenha restrições. Essa exigência é subjetiva”, afirma Fernando, que é incisivo: “ninguém é preso por dívida no Brasil”.
Adriana completa alertando que há casos de caminhoneiros que saem escoltados pela polícia da transportadora. “A carga é colocada sobre a carreta, tudo fica pronto para o transporte e, ao final, o caminhoneiro é avisado que não pode trabalhar. O constrangimento é real. Nossas ações contra as seguradoras visam até garantir os valores dos dias parados em função dessa situação”, finaliza.

Já tem decisão em favor dos trabalhadores

A Terceira Turma do Tribunal Regional do Trabalho, do Distrito Federal, julgou a ação civil pública interposta pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e condenou uma empresa por danos morais coletivos no valor de R$ 100 mil pela participação em prática de ato discriminatório na contratação e manutenção dos trabalhadores de empresas de transportes de carga.

A ação interposta pelo MPT foi fruto do acolhimento da denúncia realizada pelo Sindicato dos Transportadores Rodoviários Autônomos de Bens do Estado de São Paulo (Sindicam-SP), em 2007, contra a prática de algumas gerenciadoras de risco, que estavam cerceando o acesso ao trabalho de muitos caminhoneiros autônomos. O Ministério Público acolheu a denúncia, apurou os fatos e chegou à empresa seguradora, como uma das responsáveis pela iniciativa.

A empresa exigia, como condição para aprovar a cobertura do seguro de cargas, a realização de consultas cadastrais dos motoristas, a fim de verificar se existia alguma restrição ao crédito, pendência financeira, passagem pela polícia ou processo na Justiça, impedindo assim à inclusão de possíveis candidatos ao emprego.

Segundo a Turma, a conduta gerou dano moral à coletividade de trabalhadores que prestam serviços às transportadoras de cargas. A decisão determina à empresa de seguros a abster-se da prática, sob a  pena de multa diária no valor de R$ 10 mil pelo descumprimento da obrigação. Os valores da condenação serão revertidos ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).

Minas

Em Minas Gerais, um acordo entre o Ministério Público do Trabalho (MPT-MG) e uma empresa de gerenciamento de riscos caminha para acabar com a ficha suja, abrindo um precedente importante para os caminhoneiros. Pelo acordo, a empresa se comprometeu a não investigar e divulgar dados da vida privada e íntima dos motoristas, impedindo-os de trabalhar.

Em 2007, o Sindicam-SP entrou com uma denúncia no Ministério Público do Trabalho de São Paulo (MPT-SP) contra empresas gerenciadoras de risco que bloqueiam o nome dos motoristas que apresentam alguma pendência com Serasa, SPC, Cartórios de Protestos, Fisco, Polícia e Poder Judiciário.

A Procuradoria do Trabalho garantiu que o que a empresa fazia era discriminação. Ela comprovou a ilegalidade porque a empresa reconhecia em seu próprio site que tinha (a lista suja) como um serviço para o público. A empresa tinha um cadastro com 30 mil motoristas e cerca de 30% deles estavam negativados por conta de débitos. O Sindicam tem um processo na Justiça contra 52 gerenciadoras de risco.

Caminhoneiro conta seu drama

A Reportagem conseguiu o depoimento do caminhoneiro Cristiano Knabben, de 40 anos, pai de dois filhos, que está há três meses sem poder carregar. A família do trabalhador consegue sobreviver graças ao salário da esposa de Knabben. “Eu estou impedido de carregar porque estou com a prestação do caminhão atrasada. A seguradora consultou meus dados e proibiu o trabalho”, afirma.

O caminhoneiro revela que companheiros de profissão que estão com problemas de pensão alimentícia também não carregam. Há casos de prestação de lojas de departamentos atrasada que também impedem o carregamento. “Minha mulher é que está segurando o rojão”, afirma.

Knabben é autônomo e quando estava trabalhando conseguia ter um salário mensal de mais de R$ 6 mil. “Quem trabalha como empregado, que não é meu caso, é bem pior. A saída é tirar a carga em nome de outro companheiro para levar o pão para casa”, afirma consciente que a situação é irregular.

“Se ocorrer um acidente e a carga for danificada, a seguradora não paga porque o motorista era outro. Além disso, existe a questão policial. Podemos ser confundidos com um ladrão de carga”, completa.

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