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Aliança contra a insegurança


LulaFonte: Valor Econômico 

"Teve coisas que aprendi na mesa, aos 12 anos de idade, que não vi nem na pós da [Fundação] Getulio Vargas", afirma Jayme Brasil Garfinkel, presidente do conselho da Porto Seguro, pouco após se acomodar numa mesa ao canto do restaurante Gemma, em São Paulo. Pela frase pode-se intuir o motivo de o sempre discreto Garfinkel, de 72 anos de idade, ter aceito o convite para participar deste "À Mesa com o Valor": refeições sempre significaram oportunidades de troca e aprendizado para esse discreto engenheiro civil de formação, que ergueu a maior seguradora do país, com receita de R$ 17,2 bilhões em 2017.

"Como almoçávamos e jantávamos sempre juntos, a carreira do meu pai era uma novela acompanhada por mim, minha irmã e minha mãe", afirma Garfinkel. "Anos depois, em várias situações, agi num 'copia e cola' exatamente igual ao que vi naquela mesa."

Para este encontro, Garfinkel quis um almoço tardio, às duas da tarde, quando o restaurante estava praticamente vazio. Escolheu o envidraçado Gemma, que fica embaixo da sede da Porto Seguro, no Campos Elíseos, centro de São Paulo, entre o teatro e o espaço cultural que levam o nome da seguradora. "Prefiro comida caseira e até gosto de comida mais temperada, mas ela não gosta de mim." Um sorriso discreto revela o humor fino. Autor de uma lista de coisas a não serem feitas na vida, como ir a coquetéis, comer kiwi e arroz grudado, naquela segunda-feira Garfinkel quebrou a própria regra ao optar pelo prato do dia: risoto com filé de frango, o único disponível à la carte. "Hoje o propósito não era comer", diz.

O objetivo era conversar. Para se preparar para esta entrevista, Garfinkel leu o "À Mesa" com o diplomata Marcos Azambuja, publicada poucos dias antes. Protagonista de uma vida plena, ele se pergunta se teria o que acrescentar quando comparou sua história à do embaixador. "Sou e fui preocupado. Fiquei pensando no que poderia dizer", conta. "Sempre acho que a tarefa é mais pesada do que vou aguentar, e estudo, me antecipo, tento fazer o melhor possível." Foi assim em locais onde estudou, como o Colégio Batista Brasileiro e a Escola Politécnica da USP.

Também quando, aos 31 anos, Garfinkel viu morrer seu pai, Abrahão, um mês após o diagnóstico de câncer. Imigrante judeu de origem ucraniana, Abrahão chegou ao Brasil aos 6 anos, com três irmãs, mãe e mais nada. Casou-se com a também imigrante romena Rosa, química das primeiras turmas da USP, que abandonou a profissão para cuidar da família. "Foi uma lição de desprendimento", diz. "Tanto ao deixar de lado a carreira em favor do marido quanto na hora de avalizar as promissórias sem fundo, para realizar o sonho dele."

Corria o ano de 1972 quando Abrahão, executivo de seguradoras havia mais de 20 anos, usou o dinheiro da indenização de sua saída da Atlântica Boa Vista para comprar a Porto Seguro, fundada em 1945 por acionistas e diretores do Bradesco.

Ana Paula Paiva / ValorJayme Garfinkel diz que aprendeu muito durante refeições à mesa com o pai, que adquiriu a Porto Seguro em 1972, hoje a maior seguradora do Brasil

Garfinkel tentara trabalhar em engenharia, mas só se sentiu realizado quando entrou na mesma área do pai, por coincidência no extinto Comind. Abrahão, que amava o Brasil a ponto de batizar seu primogênito com o nome do país que o acolheu, sonhava ser presidente de uma seguradora. Garfinkel sabia disso e colocou lenha na fogueira pela aquisição. Seis anos depois, porém, foi obrigado a tocar a então pequena seguradora só com a mãe, com a morte prematura do pai. "Tinha muito medo de não dar conta."

Seu principal desafio era fazer com que corretores continuassem prestando serviços. Além de ter perdido quem chama de "vela mestra" da Porto, o governo implantou naquele ano mudança de regras que significou redução na receita da seguradora em 25% no ano. "Meu pai morreu em junho. No fim do ano sonhei que perguntava para ele se eu ia conseguir e se a produção ia entrar", diz. "Lembro dele dizendo no sonho: 'Conte as vendas diárias', algo que ele fazia todos os dias. A fala dele foi uma profecia."

O medo que Garfinkel e a mãe tinham de perder os corretores criou na Porto Seguro um cuidado com o detalhe e uma cultura de prestação de serviços que, em sua visão, a diferenciou da concorrência. Ele afirma que não foi por marketing, mas para agradar esse corretor, que foram criadas, por exemplo, a central de atendimento 24 horas e a operação de guinchos.

"O medo provocava na gente um carinho especialíssimo: portas abertas para qualquer problema", afirma. "Hoje mesmo, apesar de não estar mais na diretoria-executiva, tive uma reunião com um corretor importante e querido: ficamos 40 minutos conversando e marcamos um almoço." Segundo Garfinkel, o cuidado que perpassa a companhia não é algo que se ensina em manuais. Está nos exemplos do dia a dia. "Isso não é vantagem nenhuma: toda empresa deveria priorizar seu cliente."

Ajudou na criação desse modelo ter pessoas diferentes, com autonomia para cuidar de suas áreas. "Lembro de uma vez em que o Marco Antonio Vettori, que se aposentou como vice-presidente de produtos, resolveu colocar o 'break light', que era novidade até nos EUA e ofereceríamos aos segurados, no carro de todos os corretores que participavam do evento de lançamento", diz, sobre o acessório que acende uma luz no vidro traseiro quando o freio é acionado. "Durante duas horas, sem que eu ou qualquer um deles soubesse, nossos atendentes entraram nos carros e instalaram o sistema!" A iniciativa fez sucesso, apesar do potencial de problemas que poderia ter causado.

Apoio quem julgo ético e competente porque não há como fazer campanha sem dinheiro (....) Mas jamais doei para o Maluf

"As novidades nunca eram trazidas puramente por marketing", afirma. "Se fosse, seria genial, mas a preocupação sempre foi prestar serviços ou reduzir custos." Nos quase 50 anos nas mãos da família Garfinkel, a seguradora viveu momentos de Brasil profundo. No Plano Cruzado, as tarifas do setor foram congeladas, inviabilizando o modelo de negócio. "Como não conseguíamos mexer nos preços, resolvemos reduzir os sinistros." Foi assim que apareceram o "break light", a vacina automotiva (que tatua o número do chassi nas autopeças), os rastreadores e uma rede de oficinas próprias, para reduzir o custo dos consertos.

Ao falar das contas, Garfinkel lembra-se de outra figura essencial, Casimiro Blanco Gomez, o homem dos números da Porto, morto há dois anos. "Era um espanhol bravo, dono de uma cultura imensa e de uma inteligência aguda", afirma. "Sempre que decidíamos algo, após horas de discussão, ele vinha com sua famosa pergunta: 'Mas dá para fazer de outro jeito?'." Apesar de irritante, o questionamento era precioso. "Tive mais sorte do que competência por ter gente boa em volta de mim."

Foi sorte, por exemplo, estar no ramo de seguros automotivos quando a indústria de veículos cresceu exponencialmente no Brasil - ao lado da criminalidade, que estimula proprietários a contratar uma apólice. "Ainda bem que eu não herdei uma fábrica de cartolas!", diz, rindo.

Foi seu jeito conciliador que, muito antes de entrar na moda, criou um modelo de trabalho em sprints e pivôs, métodos usados pelas startups nos quais se desenvolvem projetos rapidamente e em pequenas fases, com correções eventuais de rumo no meio do caminho. "Administrar é ter bom senso, e eu prefiro decidir, agir e corrigir, em vez de gastar muito num projeto gigantesco que pode não dar certo lá na frente."

Com Pedro Moreira Salles e Roberto Setubal, do Itaú Unibanco

Créditos: Leonardo Rodrigues/Valor

Assim, por anos, Garfinkel, Vettori, Gómez e Paulo Abarno, outro diretor da Porto, reuniam-se diariamente às 8h15 para criar e questionar os rumos das decisões que tomavam. Garfinkel volta a um passado distante para entender aquele período, enquanto o sol de inverno ilumina cartazes da exposição de Bob Wolfenson, no prédio ao lado. "Quando eu tinha uns 10, 12 anos, não podíamos sair durante a semana. Tínhamos de estudar - e fim de papo."

Aos sábados, porém, tinha jogo dos grandes, na rua. O time Pacorínthias (com jogadores corintianos que moravam em Perdizes e no Pacaembu), do qual fazia parte, jogava contra os meninos da Pompeia. "Eu passava a sexta à tarde negociando onde ia ser, quem ia levar a bola, o melhor horário, qual mãe ia deixar. Foi aí que entendi minha competência: viabilizar o jogo", diz. "Fiquei minha vida toda tentando viabilizar o jogo."

Ele faria o mesmo, anos depois, na Porto Seguro, entre um italiano e um espanhol briguentos. O espírito conciliador estava lá. Na hora da decisão, no entanto, quem mandava era ele. "Muitas vezes, decidi baseado na intuição, como quando fomos lançar o cartão de crédito", diz. "Se eu fosse um executivo contratado, respondendo a um board, talvez não tivesse conseguido aprovar uma novidade que ia exigir um investimento brutal e poderia não dar certo."

A empresa estava forte, e a estratégia seguiu em frente e se mostrou acertada. Para ficar apenas num indicador, só de funcionários diretos são 14 mil. Ao mesmo tempo em que fez tanto, uma das poucas certezas de Garfinkel é nunca ter tido certeza de nada. "Tenho muitas dúvidas não porque as cultivo, mas porque sou inseguro mesmo", diz. Expor fragilidades, porém, não parece ser um temor. Uma delas foi a briga com o cunhado, que o levou a se afastar da irmã por mais de 20 anos. Lamenta ter perdido a infância e a juventude dos sobrinhos, que classifica como fantásticos. Perdeu também a companhia de um primo da mesma idade, quando a mãe e irmãos brigaram por causa da sociedade em uma fábrica.

Administrar é ter bom senso, e prefiro decidir, agir e corrigir, em vez de gastar muito num projeto gigantesco que pode não dar certo lá na frente

Foi numa conversa com a mãe, com quem almoçava várias vezes na semana, que Garfinkel usou uma frase de Abrahão, igual à que ouvira décadas antes à mesa. "Se ele vier, não garanto se fico", disse, referindo-se ao cunhado. "Meu pai falou isso para o dono da empresa na qual trabalhava, e usei as mesmas palavras, de maneira consciente, muitos e muitos anos depois", afirma. "É por isso que sempre estimulo meu pessoal aqui, para que os filhos estejam à mesa em todas as ocasiões possíveis."

Para dar uma saída para o cunhado e a irmã - e colocar um ponto final na briga - que a Porto Seguro abriu o capital, em 2004. A origem da disputa girava em torno do reinvestimento na empresa, como defendiam Garfinkel e a mãe, para perseguir o ideal traçado pelo pai. Ele conta que a decisão de ir a mercado foi tão rápida que, faltando uma semana para o lançamento das ações, descobriu que precisava de um conselho de administração. "'Por que precisamos de um conselho?', perguntei para o Mario Urbinati, que era controller na época. 'Porque a lei das companhias abertas manda', ele respondeu. Peguei todos os diretores, que eram meus companheiros - e pronto."

Garfinkel ri do episódio. Evidentemente, as estruturas se formalizaram e profissionalizaram de lá para cá. Em 2009, quando a Porto se associou ao Itaú, dois conselheiros do banco passaram a fazer parte da estrutura - o que lhe deu peso, segundo Garfinkel. Para ele, o fato de a diretoria expor ações e estratégias a pessoas bastante experientes faz com que a qualidade da gestão suba.

As relações familiares na empresa também deram um salto, e o contato de Garfinkel com a irmã foi restabelecido. Preocupados em não repetir a história de desavenças, eles entraram numa estrutura que protege a relação com a empresa. Participaram desde seminários com John Davis, fundador da cadeira de gestão de negócios de família de Harvard, até um conselho familiar, a partir de 1998. A cada três meses se reúnem um dia inteiro com consultores para discutir o futuro deles junto à empresa.

Ana Paula Paiva / ValorEleitor de Alckmin (PSDB), Garfinkel doou R$ 610 mil a quatro candidatos nas eleições 2018; Porto Seguro teve receita de R$ 17,2 bilhões em 2017

Recentemente foi decidido que a filha de Garfinkel, a advogada Ana Luiza, de 37 anos, fará parte do conselho como ouvinte. Já Bruno, 40, o filho mais velho, permanecerá na estrutura. Por muito tempo, acreditou-se que Bruno assumiria o comando da seguradora. "Quando ele terminou o MBA, coloquei-o trabalhando como atendente de call center", diz Garfinkel, sem esconder o sorriso. "Sou espartano. Ele ficou meio bravo no começo, mas hoje dá muito valor." Para o pai, a iniciativa significou aprender o que é respeito, hierarquia e disciplina.

"Estamos aqui pelo sonho do Abrahão e da Rosa [que morreu em maio, aos 102 anos] e, daqui a pouco, do Jayme", afirma. "Acho fantástico ter esse sonho: nosso objetivo não é ter uma companhia maior e mais poderosa, mas sim deixar felizes clientes, funcionários e, por consequência, o acionista."

Já sem qualquer outra pessoa no restaurante, o garçom traz dois pratos com sobremesas, frutas e goiabada cremosa com queijo. Garfinkel escolhe a opção "light", sem deixar de espichar o olho, nem esconder que preferia o Romeu e Julieta. No dia anterior, uma celebração familiar se estendera das nove da manhã às nove da noite, com direito a café da manhã, brincadeiras com drones, cinema, clube, bola e caminhada. No meio do caminho, almoço e pizza com filhos e netos.

Ao falar deles, Garfinkel diz que Ana Luiza tem se dedicado à Associação Crescer Sempre, entidade educacional na favela de Paraisópolis, e é apaixonada por acessibilidade social. Já o projeto do coração de Garfinkel está no Instituto Ação pela Paz, que busca melhorar presídios brasileiros. A iniciativa tem a ver com as conversas à mesa de sua infância. Abrahão e Rosa se perguntavam como era possível a pessoas que viviam perto dos campos de concentração, na Alemanha nazista, não terem feito nada a respeito. Não poderiam por conta dos soldados, diz Garfinkel.

A semente plantada, porém, gerou um projeto que já abrange todo o Estado de São Paulo e tem potencial para ser replicado no resto do país. Sem vínculo partidário e com o cuidado de não envolver o crime organizado, traz educação, cidadania e tenta reinserir os presos na sociedade. Também mede o impacto dessas atividades.

"Me incomodava ler sobre tamanha tristeza, que acontecia perto de casa e não fazer nada", afirma. A iniciativa talvez também tenha a ver com os ideais socialistas, sobre os quais ouvia seus pais conversando, e uma espécie de culpa por ter enriquecido, num país tão desigual. Garfinkel diz ficar incomodado por aparecer na lista dos maiores bilionários do mundo da "Forbes", mas não a ponto de deixar de tomar o café na padaria ou passear com os netos ou mesmo a se recusar a doar dinheiro para políticos nos quais não acredita.

Eleitor de Geraldo Alckmin (PSDB), ele tem aparecido como um dos maiores doadores individuais nas eleições de 2018, a primeira depois que o Supremo Tribunal Federal proibiu que empresas financiem campanhas. Doou R$ 610 mil a quatro candidatos. "Apoio quem julgo ético e competente porque não há como fazer campanha sem dinheiro", diz. "Mas jamais doei para o [deputado cassado Paulo] Maluf, por exemplo."

O horário avançado faz uma assistente trazer um livro de cartório para que Garfinkel assine. Ele puxa do bolso uma caneta Mont Blanc, edição Leon Tolstói, que ganhou de uma amiga e volta a um assunto que permeara a conversa desde o começo: literatura. Integrante de um clube de leitura organizado no andar onde trabalha, já havia falado de "A Queda", de Albert Camus, uma das obras a que se dedicaram recentemente. "Fala de um homem bem-sucedido que queria tudo, inclusive a apreciação das pessoas", diz. "Como todos os clássicos, aborda um tema universal que toca a todos." Uma lista feita por Abrahão, em 1938, sobre as obras que toda pessoa deveria ler para ter uma boa formação, transformou-se num quadro em sua casa.

Pouco antes falara de "Ensaio sobre a Cegueira" e "Jangada de Pedra", também de José Saramago. Discorreu sobre "Admirável Mundo Novo" (Aldous Huxley), que a mãe citava com frequência e lera havia poucas semanas. Agnóstico, apesar das origens judaicas e de ter sido educado em colégio batista, falara de "O Espírito do Judaísmo", de Bernard-Henry Levy. Era o único livro que tinha para ler em Lisboa, em férias passadas na cidade poucas semanas antes e se encantou com a explicação sobre ter uma identidade, ser impelido ao ativismo e as dores que isso gera, a partir do mito de Jonas e a baleia, explorado na obra.

Mas Tolstói e "Guerra e Paz", que leu duas vezes, o encantam profundamente. Garfinkel dá risada do episódio no qual o autor, aos 82 anos e doente, foge da própria mulher, num trem. "Esse não tinha preguiça de viver", diz, referindo-se a uma das frases preferidas de sua segunda mulher, Mônica, com quem está casado há 12 anos. O amor inesperado aconteceu depois que ele deixou a presidência-executiva da Porto - e começou num cruzar de olhares pelas paredes envidraçadas da empresa, na qual ela também trabalhava. "Por isso defendo o desprendimento", diz. "Se eu tivesse amarrado no cargo, não teria tido essa chance."

Garfinkel tece paralelo com um amigo de seu pai que, aos 59 anos, decidiu não comprar mais nenhum terno porque acreditava estar no fim da vida. "Eu pensava o mesmo: com 59 anos, nunca mais vou me apaixonar." Não só encontrou um "terno" do seu tamanho como diz que a história vem sendo feliz. "Mônica tem essa frase que sempre me ajuda: 'A vida é para quem não tem preguiça'", afirma. "Serve para fazer ginástica todo dia, viajar e ter um cotidiano rico e variado porque, para mim, esse mundinho estava bom." Olha em volta, para o quarteirão inteiro que abriga um pedaço da Porto. Hora de pedir o café e tomar o elevador de volta ao escritório. A vida, enfim, é para quem não tem preguiça.

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