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Um homem que sabe o que não quer

Fonte: Valor Econômico


Já faz alguns anos, Jayme Garfinkel tomou a decisão de elaborar uma lista de coisas que não estava mais disposto a fazer. A relação é curiosa. Ele não come mais risoto porque detesta o arroz grudado, a menos que seja nos bolinhos dos sushis. A fruta kiwi tampouco lhe agrada o paladar. Frequentar coquetéis é algo que evita até o limite de não criar embaraços a um homem de negócios. Estão lá ainda, na lista imaginária, pessoas. Gente que ele tentava cativar ou convencer de seus ideais. Fora da listagem, só coisas e pessoas que lhe trazem satisfação. A vida é curta e, aos 62 anos, ele acha que precisa dedicar seu tempo ao que vale a pena.


Jayme Brasil Garfinkel é assim, homem determinado, que tem clareza do que quer do mesmo modo que sabe exatamente aquilo que não quer. O traço de personalidade certamente concorreu para que o engenheiro civil formado pela Escola Politécnica da USP se tornasse um empresário de sucesso, dono de uma das maiores seguradoras do país, a Porto Seguro. Mas também fez com que fosse considerado "difícil" ou "cabeça-dura" por pessoas que cruzaram o seu caminho nas mesas de negociações. Ele se considera flexível, alguém que escuta a opinião alheia. Mas logo se lembra que a filha mais nova, Ana Luiza, de 28 anos, sempre lhe diz que escutar ele até escuta, mas só faz o que quer. Déspota esclarecido, então, concede com bom humor, argumentando que o seu foco é buscar o melhor para a família e a empresa, com desprendimento.

Em 1978, quando herdou a Porto Seguro de seu pai, Abrahão, que morreu ainda jovem aos 62 anos (o avô paterno morreu precocemente aos 40), um amigo muito próximo da família o aconselhou a vendê-la ou "contratar um general" para tocar a empresa em plena ditadura militar. A empresa quase quebrou durante os anos difíceis da década perdida. Mas ele não quis saber de desistir. Mesmo sem saber que a Porto Seguro chegaria tão longe trinta anos depois, tornando-se a líder em seguros de automóveis, com quase 30% do mercado, temia sentir-se um homem frustrado, que fugira da raia.

Ao longo de 2009, os dois maiores grupos financeiros do país, Bradesco e Itaú Unibanco, puderam conhecer de perto a determinação de Garfinkel. O Bradesco encontrou nela obstáculo intransponível para fechar uma associação em que pretendia ter poder de mando. O Itaú teve jogo de cintura e topou uma transação nos moldes definidos por Garfinkel: uma associação em que sua família manteve o controle da nova empresa, com ele à frente do leme. Nos dois casos, prevaleceu a sua vontade.

O empresário não queria ver sua história publicada. Mais um item para a tal lista não-escrita? Num primeiro encontro para um bate-papo informal pouco antes do Carnaval, no início do ano, mostrou-se habilidoso e ditou o rumo da conversa. Falou das aulas de dança de salão, um dos seus hobbies, e estava animado com uma viagem de dez dias que faria a Israel durante o feriado, a terceira num espaço de quase 50 anos. Discorreu animadamente sobre religião e crença em Deus, ou a falta dela. De família judia, ele costuma criticar as práticas religiosas como o jejum por considerá-las menos um sinal de ligação com Deus e mais uma questão de tradição e se define como agnóstico. "Acho complexo nós, com a nossa cabecinha, perdermos tempo tentando descobrir o que há além."

O segundo encontro, em 2 de abril, deu-se no restaurante português A Bela Sintra, nos Jardins. Ao contar da viagem a Israel, Garfinkel mostrou-se melancólico ao falar de sua percepção de que as diferenças entre israelenses e palestinos são irreconciliáveis. Durante a viagem, leu um livro que considerou instigante e que também alimentou sua angústia. "Em que creem os que não creem" é uma acalorada troca de cartas entre o pensador Umberto Eco e o cardeal romano Carlos Marian Martini, publicadas originalmente na revista italiana 'Liberal', em que os dois debatem a existência de Deus e dialogam sobre a ética. "O conflito (entre judeus e palestinos) está ligado à religião e a questões históricas e geográficas, ninguém está preocupado com a ética. A alegria humana é maior quando se consegue compartilhá-la. Por que um projeto conjunto fica estragado pelas religiões? É uma estupidez."

Nesse segundo encontro, Jayme permitiu que a conversa enveredasse brevemente pela seara dos negócios. As tratativas com o Bradesco já corriam em sigilo e boatos circulavam. Quando questionado sobre a existência de grupos interessados em comprar a Porto Seguro, foi logo dizendo que todo mundo sempre quis comprar a empresa. Lembrou também que o Itaú, por muitos anos, quis levar a fatia acionária de sua irmã, Stela. Ele e o cunhado Jaime Blay viveram por 20 anos às turras dentro da companhia. Garfinkel não esconde que só fez a abertura de capital da Porto, em 2004, para se livrar de vez do marido da irmã. "Mas a empresa não está à venda. Se vender, perde a graça", decretou já na hora do cafezinho. E quanto à publicação de seu perfil? "Quem sabe surja uma hora oportuna à frente", sinalizou apenas, antes de pendurar no ombro a mochila preta da qual não se separa em seus compromissos fora da companhia.

Em 5 de outubro, o terceiro encontro. A negociação com o Bradesco fracassara e a associação com o Itaú estava selada. Garfinkel, então, concordou em dar uma entrevista para um perfil e marcou um café da manhã no contemporâneo hotel Emiliano, na rua Oscar Freire, para as 7h30 daquela segunda-feira (horário cruel para qualquer jornalista). Faltando poucos minutos para as 8h ele cruzou, atrasado, primeiro o lobby e depois o longo corredor que abriga o bar e leva ao restaurante com pé direito altíssimo e banhado por luz natural. Habituado a marcar todos os seus compromissos durante a primeira refeição do dia no Hotel Renaissance, alguns quarteirões distante, se enganou e foi parar no lugar errado. Daquela vez, a opção pelo Emiliano fora feita porque queria provar uma omelete de claras, altamente recomendada por seu filho Bruno, de 31 anos. O mais velho, diferentemente da caçula Ana Luiza, que é formada em direito e escreve agora seu segundo livro, trabalha na Porto Seguro como superintendente da área de sinistros e costuma reunir-se com o pai na hora do café da manhã. Na correria do dia-a-dia, é o espaço que encontram para trocar experiências e conversar.

Jayme Garfinkel não se lembra, mas o primeiro encontro de fato acontecera quatorze anos antes, no restaurante do centenário Grand Hotel Ca'd'Oro, na região hoje chamada "baixa Augusta", que já foi chique, decadente e agora está em processo de revitalização, com grande concentração de novas casas noturnas. O então presidente da Porto já estava sentado à mesa quando chegou, atrasada, a repórter iniciante escalada para cobrir o setor de seguros e ele, sempre direto, não conteve o espanto e o receio. "Menina, você não é um pouco nova para escrever sobre algo tão complicado?"

No salão do Emiliano, que, com sua decoração clean e as músicas em estilo "lounge" ao fundo, em nada lembra a austeridade decadente do Ca'd'Oro, agora ele discorria novamente sobre temas complexos. As negociações para uma associação com o Bradesco, que chegou a ser antecipada pelo Valor, já se encontrava na reta final em agosto, quando tudo deu errado. Ao receber de volta do banco a minuta do acordo de acionistas que enviara, Garfinkel percebeu que havia algo errado. "Aquilo que eu havia combinado, de ter o controle, havia sido alterado", recorda. Seria criada uma holding com as ações da família Garfinkel e do Bradesco, onde seriam realizadas reuniões prévias às do conselho da Porto Seguro e se definiria as matérias previamente. "Na versão que me devolveram, eles teriam direito de veto a tudo na reunião prévia." Garfinkel procurou o presidente do banco, Luiz Trabuco Cappi, e relata ter ouvido dele que "nosso pessoal não abre mão disso".

No dia 14 de agosto, o empresário se sentiu liberado para procurar o presidente do Itaú, Roberto Setubal. Ainda em julho, com o vazamento das informações de negociação com o Bradesco na imprensa, Garfinkel recebera um telefonema de Israel Vainboim, ex-presidente do Unibanco, braço direito de Pedro Moreira Salles e hoje um membro do conselho da Itaú Unibanco Holding, sinalizando que havia interesse em negociar. Mesmo sem ter um contrato de exclusividade com o Bradesco, não quis abrir conversas com o concorrente naquele momento. "Não era uma venda, era uma associação, então eu não queria fazer um leilão de preço e precisava que o outro lado confiasse em mim."

Até hoje, muita gente não acredita que a Porto Seguro não foi comprada pelo Itaú. "Todo mundo acha que há algo escondido, mas não tem", diz, assegurando não haver acerto para que o banco assuma o controle. "Eu tive escolha quando meu pai morreu e o que meus filhos vão fazer é decisão deles, não precisa estar em contrato. Por que eu vou ser o monopolista das grandes decisões?"

Ao fechar o acordo com o Itaú, a família Garfinkel trocou as ações da seguradora, listadas em bolsa, por outras da nova holding, de capital fechado, o que significa que perderam a liquidez de seus papéis. "A gente não precisa mais de dinheiro, a gente precisa de um sonho. E a companhia será objeto de orgulho e integração para a nossa família", acredita.

Desde muito cedo, o empresário ensinou aos dois filhos uma frase de autoria ignorada por ele. "Se você quer que alguém construa navios, faça com que deseje a imensidão do mar", costumava dizer. Hoje, ele relembra a frase e elabora. "Mais importante num negocio é ter o sonho de alguém pulsando dentro dele." Para Garfinkel, as empresas familiares como a sua têm a vantagem de serem a expressão do sonho de um empreendedor. No caso, ele mesmo. Foi por amor ao negócio e não apego que diz ter exigido a manutenção do controle. Ele sonha em conduzir a nova empresa, agora com a força do Itaú a apoiá-lo, a um novo patamar.

Fazer a diferença no mundo e na vida dos outros é algo muito presente em seu discurso e poderia passar como algo desprovido de conteúdo não fosse ele o autor do projeto Crescer Sempre, que deu acesso ao ensino a crianças da comunidade da favela de Paraisópolis, zona Sul de São Paulo. O projeto inspirou outros empresários paulistas a adotar escolas públicas.

Jayme Garfinkel não tem vergonha de admitir e nem tenta disfarçar certas falhas para parecer um empresário mais moderno e arrojado do que é. Ele conta com a maior naturalidade que criou o conselho de administração da Porto Seguro meio no improviso, apenas vinte dias antes da abertura de capital, porque foi avisado de última hora da necessidade. Chamou então os seus conselheiros naturais da vida inteira, Casimiro Blanco Gomez e Marco Antonio Vettori, ambos ex-executivos que ajudaram a construir a empresa. Foi assim, no melhor estilo "para constar", que esse conselho existiu por cinco anos. Isso até a inquietação natural de Jayme Garfinkel motivá-lo a buscar algo mais. A impressão que se tem é que ele reflete sobre tudo o tempo todo e com frequência lança desafios intelectuais a seus interlocutores e a si mesmo.

"Eu andava insatisfeito com o meu desempenho como presidente do conselho, sabe", diz com seu jeito manso de falar. "Fui capaz de exercer um bom trabalho antes, mas agora me deparo com novas dificuldades", confessa. Levou então todos os membros do conselho para um curso na Fundação Dom Cabral, centro de excelência em gestão no país, para aprender direito como se faz.

Ele podia ignorar até recentemente o funcionamento apropriado de um conselho e toca sua companhia como o dono do empório que de tudo sabe. Mas mostra-se inflexível e até radical quando se trata de separar o que é família e o que é empresa. Nunca se reembolsa, por exemplo, de gastos com almoços de negócios. O motorista da empresa não resolve questões pessoais. "Que diferença faz? Faz muita, faz o exemplo", diz taxativamente, tendo ao fundo a voz doce da cantora Bebel Gilberto, parte da seleção musical do Emiliano.

A separação ficou clara de vez quando, recentemente, ele e os filhos frequentaram o workshop do especialista americano John Davis, sobre famílias e negócios. Jayme tomou a decisão de criar um "family office" para administrar o patrimônio da família e cuidar de seus interesses. Um conselho de família, do qual fazem parte ele, os dois filhos e a mãe deles, se reúne periodicamente. Preocupado em não repetir sua própria história, o empresário está particularmente preocupado em preservar a harmonia entre os filhos. "Eu já tive conflitos familiares com minha irmã e é uma coisa dolorosa. É preciso que eles se entendam e pensem no melhor para a empresa."

Jayme mostra-se ambíguo quando fala da possibilidade de o filho Bruno sucedê-lo um dia. "É óbvio que todo pai quer ver o filho como o próximo. Mas o importante é que ele seja feliz, não tem que ter a empresa como uma carga em cima de si." Tanto o mais velho quanto a filha Ana Luiza estariam alinhados em buscar a melhor gestão para a companhia. O cargo de CEO foi assumido por Fabio Luchetti e é ele quem toca a companhia. Até a associação com o Itaú, Garfinkel costumava reunir-se uma vez por semana apenas com Luchetti. Agora, as sete horas de trabalho diário viraram dez e seu envolvimento voltou a crescer.

Mas quando reflete sobre seu futuro, não se vê indefinidamente apegado à empresa que construiu. Quer entregar a companhia com uma perpetuidade de cem anos a frente e acha que a associação com o Itaú vai pavimentar o caminho. "Eu não quero ser um daqueles velhinhos que fizeram a mesma coisa a vida toda, frequentaram sempre o mesmo café da manhã. Me vejo pegando a mochila e saindo em busca de coisas novas para a minha vida. Se eu ainda conseguir carregar a mochila", diz, rindo, antes de sentar-se ao volante de sua Land Rover Discovery III e sair, sozinho, pelas ruas de São Paulo.

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