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Anotações sobre o projeto de microsseguros

Fonte: Valor Econômico por Renato Mandaliti e Marco Bevilaqua são sócios do escritório Mandaliti Advogados.

Quando Muhammad Yunus conheceu o drama vivido por Sufia Begum - uma artesã da paupérrima comunidade de Jobra, em Bangladesh, que tinha de recorrer a agiotas locais que lhe cobravam juros escorchantes pelo empréstimo de US$ 0,22 para que ela pudesse confeccionar seus tamboretes de bambu - indignou-se com tal situação e iniciou um movimento que mudaria a vida dessas pessoas, até então esquecidas pelas instituições financeiras tradicionais. O movimento criado por Yunnus, conhecido como microcrédito, ganhou rapidamente espaço no mundo econômico-financeiro e tornou-se um importante instrumento de inclusão social.

Assim como o microcrédito, o microsseguro destaca-se como um mecanismo inovador na proteção dos riscos que afetam a população de baixa renda, e está prestes a se tornar realidade no Brasil.

Um projeto de lei concebido pelo Grupo de Trabalho de Microsseguros da Superintendência de Seguros Privados (Susep) está em trâmite na Câmara dos Deputados e marca o início formal desse importante braço das microfinanças no Brasil.

O projeto define como planos de microsseguros aqueles previamente aprovados pela Susep, voltados às reais necessidades da população de baixa renda e da microempresa, com desenho peculiar, como limite máximo de indenização, de prazo de vigência e de prazo para pagamento de indenização.

O aspecto mais relevante do projeto é a simplificação na contratação

O aspecto mais relevante do projeto é a simplificação na contratação. É justo esperar que a regulação do microsseguro represente um divisor de águas na definição das formalidades consideradas necessárias na comercialização e contratação. Assim, ao mesmo tempo em que os planos poderão prever, por exemplo, contratação de prêmios semanais para melhor adequação ao fluxo de caixa dos microssegurados e detecção prematura de inadimplência, é possível também imaginar a possibilidade de contratação por meio de telefones celulares, realidade já vivida em alguns países. Para tanto, espera-se que o órgão regulador de seguros, sempre atento e sensível às evoluções tecnológicas, dê os passos fundamentais na direção da flexibilização da comercialização e contratação, sem perder de vista, evidentemente, a proteção do consumidor.

O projeto também prevê que poderão operar em microsseguros as seguradoras especializadas exclusivamente nesse tipo de planos e também aquelas que, embora não operem com exclusividade, mantenham essa operação segregada patrimonial e contabilmente. Essa especialização faz todo sentido quando se busca atingir uma parcela da população - estimada em pelo menos 60 milhões de pessoas - que hoje, com sorte, é assistida somente por programas sociais do governo. São pessoas distantes do mercado tradicional de seguros por várias razões, dentre as quais o desconhecimento dos produtos e serviços inerentes a esse mercado, a informalidade das relações de trabalho em que estão inseridas e a inviável relação custo-benefício entre os prêmios e os custos de transação.

Apenas para se ter uma ideia do potencial desse novo mercado, um levantamento realizado em 2003 verificou que aproximadamente 80% das pessoas que trabalhavam por conta própria com renda mensal até R$ 1 mil tinha de alguma forma tomado crédito no mercado, mas nunca havia contratado seguro. Outra pesquisa constatou que o acesso das pessoas a seguros em geral é de 1,45% na classe E, 4,19% na classe D, e apenas 15,77% na classe C.

As formas para se atingir esse mercado ainda inexistente e inexplorado são, no mínimo, empolgantes. O projeto prevê a criação dos corretores especializados em microsseguro, que serão, preferencialmente, pessoas das próprias comunidades de baixa renda, que além de receberem treinamento técnico específico e qualificarem-se para o trabalho no mercado, encurtarão a distância entre a seguradora e o microssegurado, atuando decisivamente na construção de uma relação de confiança. Essas pessoas serão também imprescindíveis na atividade de pós-venda, inclusive no controle e acompanhamento dos pagamentos.

Outra grande novidade do projeto é a introdução da figura do correspondente de microsseguro como distribuidor do produto. Fato pouco conhecido é que no Brasil estão localizados cerca de 90% dos correspondentes bancários de todo mundo. São mais de 130 mil correspondentes bancários em todo território nacional, que poderão igualmente desempenhar as funções de correspondentes de microsseguro. Outro fato também pouco conhecido é que as pessoas que trabalhavam por conta própria com renda mensal de até R$ 1 mil em 2003 utilizavam os correspondentes bancários como principal forma de pagamento de suas contas (43%).

Ainda no tocante aos correspondentes de microsseguros, o projeto, com o objetivo de conferir maior segurança à população de baixa renda, estabelece que o pagamento do prêmio ao correspondente considera-se feito à seguradora. Em contrapartida, no intuito de não onerar a seguradora e evitar dúvidas que possam surgir da interpretação sistemática da legislação, o projeto afasta a aplicação da lei dos representantes comerciais aos correspondentes de microsseguros.

Embora não esteja expressamente prevista no projeto, a atuação de cooperativas, em especial as de crédito, como correspondentes de microsseguros é perfeitamente possível. Existem hoje no Brasil mais de 1.400 cooperativas. A exemplo do que ocorre no microcrédito, as cooperativas de pequenos empresários, microempresários e microempreendedores e as cooperativas de livre admissão poderão ser fundamental na aproximação entre seguradoras e o público do microsseguro - população de baixa renda e microempresários.

É inegável, portanto, a importância do correspondente de microsseguro, que poderá ser utilizado pelas seguradoras que hoje não dispõem de agências bancárias para distribuição dos seus produtos à população de baixa renda.

Outra importante novidade trazida pelo projeto, é que nos microsseguros onde houver a participação da figura do estipulante - pessoa jurídica que contrata o microsseguro em favor de pessoas que com ela de qualquer modo de vincule - a relação jurídica entre os microssegurados e a seguradora será sempre considerada individual e a estipulante será equiparada ao correspondente. Essa ficção criada pelo projeto elimina possíveis dúvidas a respeito da posição e atuação da figura do estipulante.

Ainda que, atualmente, a concessão de crédito no Brasil guarde pouca relação com utilização de seguros, é essencial que a futura regulamentação infralegal do microsseguro crie e preserve as sinergias potencialmente existentes entre a operação de microcrédito e a de microsseguros, principalmente em razão da semelhança dessas operações.

Para tanto, é preciso que, antes, nossos representantes aprovem o projeto concebido pelo Grupo de Trabalho de Microsseguros da Susep o mais rápido possível, transformando-o na lei que certamente será havida como relevante conquista social da população de baixa renda.

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