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O crime que resiste ao desmanche

Fonte: Valor Econômico
Por Maria Cristina Fernandes | De São Paulo

Adolescentes da zona leste de São Paulo recebem de R$ 300 a R$ 500 por carro roubado entregue a um receptador. Se o carro em questão for um veículo utilitário a diesel, seu valor de troca, na fronteira do Brasil com o Paraguai ou a Bolívia, que dispõem de legislação para facilitar a regularização de veículos, pode chegar a R$ 288 mil, em cocaína, óleo e a pasta base para seu fabrico. Esta espetacular margem de lucro garante o poder de organizações que controlam o roubo de veículos no mercado de São Paulo, como o Primeiro Comando da Capital (PCC). Essa "cadeia produtiva" ganhou, no ano passado, uma legalizada concorrência no mercado de seguros, com um produto que oferece reparos com peças usadas. A chegada do concorrente, no entanto, ainda está longe de fazer sombra ao rentável negócio.

A história está contada num dos capítulos do livro sobre o PCC que Gabriel Feltran, professor de sociologia da Universidade Federal de São Carlos, escreve sobre a organização a ser publicado pela Companhia das Letras. Feltran disseca, com a colaboração de Filipe Moreno Horta, doutorando da mesma universidade, a etnografia da organização. Foi em Sapopemba, bairro do extremo sul de São Paulo, que começou suas pesquisas. Bairro originalmente ocupado por operários do ABC paulista, tornou-se, com a crise dos anos 1980, grande fornecedor de mão de obra para o crime.

Ao contrário da tradição carioca na divisão entre traficantes e ladrões, a etnografia de Feltran identificou no PCC uma ação unificada de tráfico, roubo de carro e assaltos especializados. Não é uma empresa, diz, mas uma coletividade, ritualizada por batismos, apadrinhamentos e vigilância, que associa milhares de micro, pequenos, médios e grandes empresários da economia ilegal com ramos na formalidade.


Foi no mercado de roubo de carros, cuja mensuração ultrapassa as estatísticas policiais e é minunciosamente acompanhada pelas seguradoras, que o pesquisador encontrou as bases mais empíricas de sua atuação. São 90 milhões de automóveis no país, dos quais 500 mil (0,5%) são roubados ou furtados todo ano, 44% em São Paulo. Metade é abandonada depois de uso, sendo encontrados pela polícia civil. A outra metade abastece três mercados: desmonte de peças (60% do total), revenda depois de legalização (30%) e troca por drogas e armas nas fronteiras com Bolívia, Paraguai e Colômbia (10%).

Para explorar a dinâmica desses mercados, o pesquisador, além das estatísticas, valeu-se de entrevistas com policiais, integrantes do PCC e executivos de seguradoras. Começou pelo mais restrito e lucrativo deles, o da troca por drogas e armas. Constatou que a permuta dos carros se dá por três tipos de matérias-primas: a cocaína propriamente dita, o óleo e a pasta base. Com um quilo dessa mistura, que não tem mais do que 15% de cocaína pura, se montam oito pacotes com 200 pinos cada. É no pino, recipiente plástico em forma de cartucho de bala, que a "farinha" chega ao consumidor final. Em São Paulo, o preço está estacionado há mais de dez anos em R$ 10.

O bilionário contrabando de carros na fronteira brasileira sempre foi apontado como um dos principais motivos para o preço elevado do seguro de carros no Brasil. Seu custo leva a que apenas um terço da frota nacional seja segurada. Em entrevista citada pelo autor, dirigente de uma federação do setor relata sua mobilização para evitar que a Bolívia regularizasse carros comercializados clandestinamente só foi capaz de reaver 10% dos estimados 4.300 veículos brasileiros roubados que rodam naquele país.

Às voltas com acusações de envolvimento de funcionários e ex-funcionários com a cadeia produtiva do roubo e furto de carro, as seguradoras se mobilizaram para aprovar, primeiro nas Assembleias Legislativas de vários Estados, e depois, no Congresso Nacional, leis que regularizaram o desmanche. Para angariar apoio à nova legislação, dirigentes do setor argumentaram que a regularização do desmanche não apenas ajudaria no combate ao crime, com um banco de dados para registro de origem e destino de todas as peças de veículos desmontados, como possibilitaria a popularização do seguro de carro. A legislação teve um forte apoio do então secretário de segurança de São Paulo, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes. Seus objetivos, no entanto, ainda estão longe de serem atingidos.

Com o fechamento de desmanches que não tiveram como se adequar a normas como impermeabilização do solo e cadastro digital das peças, o serviço clandestino migrou para descampados na periferia das grandes cidades. O seguro popular para automóveis, nicho de mercado visado pela lei, também ainda patina. E não apenas porque a recessão fez despencar a venda de carros para a classe C.

Presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro, Ernesto Tzirulnik identifica uma grande distância entre as justificativas apresentadas para embalar os projetos de lei e sua real intenção. Descrê das perspectivas de o setor se engajar em mudanças efetivas enquanto um paulistano de Capão Redondo, bairro violento da zona sul da capital, não puder usufruir de uma apólice nos mesmos moldes que o morador dos jardins. As dificuldades de fazer deslanchar o seguro popular não impediu as seguradoras de ter regularizado seu recurso ao mercado de peças usadas, acesso que lhe permite modular os custos dos seguros vigentes e enfrentar, assim, a alta sinistralidade do segmento.

Quando um segurado tem um carro acidentado com perda total, ou roubado, é indenizado pela seguradora, que passa a ser proprietária da sucata ou do bem, quando encontrado. Uma parte dos veículos que lhe são devolvidos vai a leilão. Em São Paulo, policiais que atingem metas de redução de crime são bonificados. Dos crimes relacionados - morte violenta, roubo em geral e roubo e furto de carros - este último é o que mais distante tem ficado da meta, ainda que as estatísticas da Secretaria de Segurança Pública indiquem redução de 15% na ocorrência entre 2014 e 2016.

O contrabando da fronteira e o desmanche clandestino oferecem farta concorrência. Dado da Confederação Nacional de Seguros citado por Feltran dá conta de 20% de fraudes nos sinistros de roubo de carro no Brasil. Um taxista da zona leste de São Paulo contou ao autor que, chegada a hora de trocar o carro, considerou pouco vantajosos os preços praticados no mercado de usados. Entregou o carro a um receptador que lhe pagou R$ 1 mil em dinheiro. Com um boletim de ocorrência, de preferência lavrado uma semana depois da entrega do veículo, tempo para que chegue à fronteira, a seguradora paga o restante.

Uma operação da polícia civil em São Paulo no ano passado com nove mandados de busca e apreensão na região metropolitana da capital identificou a participação direta e indireta de seguradoras, leiloeiros, despachantes e comerciantes de carros usados no fomento ao furto e roubo de veículos. O esquema se inicia na vistoria. Em algumas situações o carro que deveria ser vendido como sucata ganha um selo de avaria de pequena monta que mantém a validade de sua documentação e de seu chassis com os quais carros roubados são "esquentados". Em outras situações, o dano é maquiado para que o carro possa ser passado adiante sem registro de uma avaria de grande porte.

Nesta operação um caminhão cegonheiro levou 50 carros arrematados ou prestes a ir a leilão que tinham uma documentação sem restrição apesar do seu estado deplorável de manutenção. No pátio de uma seguradora, foram identificados compradores com passagem pela polícia por receptação ou estelionato. São todos parte do mercado de sucatas, que troca módicos rendimentos de 5% a 10% do valor do carro quando vendidos a siderúrgicas, para alimentar uma grande e ramificada indústria que Feltran chama de "Robauto". É uma indústria em que todos ganham, menos as vítimas -adolescentes que batem ponto na indústria do crime e proprietários - de assaltos violentos.

A operação da Polícia Civil de São Paulo já se deu na vigência da Lei do desmanche. Feltran acredita que os crimes relacionados à atividade podem vir a diminuir, uma vez que os comerciantes terão menos liberdade para revender as peças ou os carros roubados, mas não desaparecerá. Na Alemanha, país que lidera as estatísticas de roubo e furto de carros da Europa, descobriu que o mercado é dominado pelas máfias russa e polonesa. O carro segurado na Alemanha vai reaparecer na Polônia semanas depois. A diferença é que a transação se dá com um registro menor de violência ou envolvimento de menores.

Se o roubo de carros cair a ponto de inviabilizar o escambo com a droga, o crime se rearticulará. Tanto pode vir a aumentar o roubo a bancos e residências quanto estreitar seus laços com a política tradicional em busca de proteção. Na operação que investiga a JBS, por exemplo, permanece sem explicação a passagem de R$ 2 milhões em propina pagas ao senador Aécio Neves (PSDB-MG) pela conta bancária da empresa agropecuária da família de outro senador em cujo helicóptero, há quatro anos, foi encontrada meia tonelada de cocaína. Não foram comprovadas relações do parlamentar com a droga, ainda que o vôo tenha sido custeado com a verba de combustível do gabinete do filho do senador na Assembleia Legislativa de Minas Gerais e o piloto tenha sido funcionário do mesmo gabinete.

Maria Cristina Fernandes, jornalista do Valor, escreve neste espaço quinzenalmente

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