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A epopeia dos papéis

Fonte: Revista Veja

Todos os fatos decisivos da moderna história da humanidade - os grandes incêndios, as magníficas expedições marítimas, as tragédias devastadoras e os recentes atentados terroristas foram resgatados ou garantidos pela engenhosa engrenagem financeira de compensações

W.F Padovani

O barulho do fogo crepitando ainda ecoava em Londres logo depois do incêndio que em setembro de 1666 devorou boa parte da cidade quando, para combater muitos dos resquícios sociais deixados no rastro do fogaréu, surgiu uma empresa que mudaria o comércio, as finanças e a economia da Inglaterra - e, a partir dela, de todo o mundo. Mudaria também a vida de cada cidadão que, para usar uma palavra muito ligada ao setor que daquele momento em diante inventou uma era. aderisse aos serviços da nova companhia, e de todas que lhe sucederam. copiando sua forma de atuar. Em linguagem de boca de caixa: que virasse cliente. A Insurance Office, o nome da empresa revolucionária, criou uma cartela de seguros. Mas não foi apenas mais uma cartela. Foi um inovador e engenhoso mecanismo.

Mencionados pela primeira vez na história no Código de Hamurabi, talhado com escrita cuneiforme pelo homônimo rei da Mesopotâmia, no século XVIII a.C., numa rocha de diorito na região que hoje é o Iraque - é de lá que veio a célebre frase "olho por olho, dente por dente" -, os seguros, 3000 anos depois, adquiriram seu contorno definitivo. Seja ele qual for. de vida. de carro, de casa, de viagem. de saúde, de previdência. o seguro que você contrata hoje tem como fonte aquela papelada original da Insurance. Os seguros modernos - e, como salienta o historiador escocês Niall Ferguson em seu livro A Ascensão do Dinheiro, "o primeiro passo para compreender a complexidade das instituições financeiras modernas é descobrir de onde elas vieram" - enfim, nasceram sob as últimas chamas que atacaram Londres no século XVIL E hoje representam um segmento que pagou prêmios de 4.1 trilhões de dólares em 2009. 64 bilhões deles no Brasil, o equivalente a 1.5% do total global. A gigantesca teia das seguradoras abrange quase toda a população da Terra. Afinal, excluindo-se as que vivem em faixas de miséria absoluta. como na Etiópia, Haiti e Guiné-Bissau, toda pessoa tem pelo menos um tipo de seguro no bolso.

Pelos macabros resultados - 13000 casas, 87 igrejas, inclusive a Catedral de St. Paul, onde três séculos depois do incêndio o príncipe Charles se casou com Diana, e44 prédios públicos destruídos, 100 000 desabrigados e, oficialmente, seis mortos, número até hoje duvidoso porque, como as pessoas mais pobres não eram registradas, há quem acredite que esse total é de fato, chegue a milhares -, o fogo na cidade, que começou na padaria de sir Thomas Faynor em Pudding Lane, perto da célebre London Bridge, sobre o Rio Tamisa, atiçou os membros da classe dominante a pensar, urgentemente, em uma tábua de proteção para os proprietários de bens materiais e, claro, para as famílias que tivessem vítimas em meio às tragédias, E a solução encontrada pela Insurance só foi possível pela reunião de dois gênios franceses doze anos antes da catástrofe: o matemático e cientista, só para citar duas de suas inúmeras funções, Blaise Pascal e o também matemático e cientista Pierre de Fermat. Da célebre correspondência que trocaram por volta do ano de 1650 irrompeu a teoria das probabilidades, que criou o pedestal matemático para que fossem feitos, na ponta do lápis, os cálculos que tiraram, no início da era moderna, depois de dez séculos da entrevada Idade Média, o caráter de castigo divino, ou de azar, que se atribuía a toda calamidade. Pela ótica de Pascal e Fermat, muitos desastres tinham uma causa que poderia ser identificada. E mais: prevista. Foi isso, a previsão de acontecimentos fatais na vida das pessoas, que permitiu à Insurance apresentar ao mercado seu jeito específico de montar seguros. Aliás, a possibilidade de ocorrer um incêndio em Londres com a dimensão daquele que realmente aconteceu estaria no topo das previsões da empresa se ela tivesse sido concebida ames de as primeiras faíscas serem lançadas pelas janelas da padaria de Faynor. Afinal, na Londres dos Stuart, assim como nas cidades do mesmo porte naquela época, as ruas eram estreitas demais e as casas, de madeira. Um rastilho de fogo à espera de ser deflagrado.

Do século XVII para cá, muitas seguradoras se tornaram potências globais - como a nipônica Japan Insurance, a francesa AXA, a alemã Allianz, a italiana Assicurazioni Generali e, para voltar à Inglaterra a londrina Lloyd's, que na prática é um mercado, um esplendido mercado, diga-se, de agentes de seguro. E que foi fundada, naquele mesmo século do grande incêndio, como uma taberna em que se reuniam navegadores e negociantes. Deu no que deu. Há muito tempo a Lloyd's é quase um sinônimo mundial de seguros No Brasil, o processo teve como marco zero a chegada da corte de dom João VI, em 1808. As empresas de seguros se propagaram com sucesso por um motivo muito simples: quem tem um bem não quer perdê-lo e, se o perder, deseja ao menos recuperar a quantia que ele vale. E ainda porque quem pretende tomar um rumo mais arriscado, e não tem como pegar da própria carteira o valor envolvido na operação, precisa de·patrocinadores, aqueles sujeitos abonados que participam de uma empreitada com o capital - e ficam com o risco. E aí que as seguradoras entram em cena, e com elas todo o formidável complexo de resseguros.

Foi assim que as caravelas ibéricas partiram da Europa em direção ao desconhecido nos séculos XV e XVI - e desembarcaram na Am6rica. Pelo esquema de resseguros, teia financeira em que uma linha dá suporte a outra, as expedições de Américo Vespúcio, Cristóvão Colombo e Pedro Alvares Cabral tinham, numa das pontas mais sólidas da engenharia financeira que as garantia, dinheiro grosso da casa dos Médici em Florença. Esse então é um dos incontáveis exemplos que unem a história dos seguros ao progresso da humanidade. De escavação de petróleo a viagens de foguete, não há obra, ou evento, de porte que não conte com as seguradoras como pilar.


A conta que mudou tudo

Como os matemáticos franceses Pascal e Fermat chegaram à teoria das probabilidades - por que ela influenciou tanto a forma de calcular o seguro

Foi por causa de uma questão de jogo de dados que Blaise Pascal, em 1654, começou a pensar no que resultaria numa das descobertas matemáticas mais relevantes da história - a teoria das probabilidades. A questão chegou a ele pelo amigo Chevalier De Méré, um nobre que era jogador compulsivo de Méré queria saber qual era a relação entre as jogadas e os prêmios. Pascal se interessou pelo assunto. E de imediato enviou uma carta sobre o tema a outro matemático e cientista francês: Pierre de Fermat. Nas sete cartas trocadas, elas demarcaram porcentualmente as chances de ganhar nunca ou noutra situação, de acordo com o desenvolvimento do jogo. As cartas acabaram reorientando o assunto - antes investigado por outros pesquisadores.

As novas regras de probabilidade eram abrangentes: podiam ser aplicadas até em previsão de tragédias, sem a presença do imponderável, ou da ira de Deus contra os pecados humanos. "A concepção do controle do risco constitui uma das ideias centrais que distinguem os tempos modernos do passado mais remoto", afirmou o financista americano Peter L. Bernstein, que foi presidente da empresa de consultoria econômica à qual empresa o nome, no livro Desafio aos Deuses. Retornando no tempo, a tese de Pescal e Fermat então se converteu em retaguarda para a criação da primeira seguradora do mundo moderno, a Insurance Office, na Londres pós-incêndio de 1666. Os cálculos que ela empregou ainda são a raiz da equação que as companhias de seguros usam hoje para elaborar a tabela de prêmios de acordo com o impacto dos sinistros.

"Os seguros estão por trás dos grandes empreendimentos que mudaram o mundo", diz Alexis Cavichini, professor de finanças da Universidade Federal do Rio de Janeiro e organizador do livro A História dos Seguros no Brasil. Ele faz uma prosaica comparação para demonstrar a importância do aprimoramento desse tipo de produto. "Se três dos dez camelos de uma expedição à Arábia em busca de objetos de valor no ano 700 morressem, o que não era nada improvável, isso seria um problema e tanto. Com menos animais, os participantes trariam menos objetos - e isso poderia até significar o fracasso da iniciativa para quem deu amparo financeiro a ela", diz Cavichini. "Séculos depois, em Veneza, ainda que de um jeito rústico, os embriões das seguradoras de hoje atuavam como cooperativas que emitiam uma espécie de garantia não para uma expedição, mas para várias ao mesmo tempo. Assim, o risco de uma fatalidade diminuía, o custo se pulverizava e sobrava mais verba para novas viagens.

Essa contabilidade, multiplicada pelo infinito conjunto de ramos em que as seguradoras podem espalhar seus serviços, ajuda a explicar por que essas empresas, pelo menos as de ponta, não quebram em megatragédias 5 como a queda das Torres Gêmeas de Nova York nos atentados de 11 de setembro de 2001, a passagem avassaladora do furacão Katrina, também nos Estados Unidos em 2005, ou o tsunami seguido de terremoto que destruiu a costa leste do Japão em março deste ano. Uma única seguradora, a Tokio Marme, desembolsou o equivalente a 23,3 bilhões de reais em indenizações, com 660000 sinistros pagos, acionados menos de uma hora depois do tremor

As engrenagens dos seguros e resseguros trabalharam a todo o vapor na reconstrução do que virou ruína nesses episódios e no reerguimento pessoal das vítimas. E, por aquela contabilidade, se há um gasto maior, e até bem maior, que o esperado numa área, as outras, em temporada sem sustos, não deixam a linha do saldo médio despencar a ponto de asfixia. Até em desgraças desencadeadas pela própria ação financeira, como na crise do subprime, que esfarelou diversos bancos expressivos por causa dos empréstimos hipotecários não pagos nos Estados Unidos, em 2008, o que provocou quebradeira financeira global, a máquina dos seguros roda num ritmo forte - e nesse caso, como em geral nos outros, também estava na origem do enredo, de certa forma subscrevendo com seus sustentáculos os documentos das hipotecas. Assim, dando resguardo a financiamentos que empurram a humanidade para a frente em termos tecnológicos, de saúde, de previdência, de educação, de bem-estar geral, enfim, ou servindo de argamassa para as reedificações depois de calamidades, os seguros seguem sua sina: garantir a construção do trampolim e a vida do homem que dele salta em busca de um mundo melhor.

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